Como avaliar um professor budista

Como avaliar um professor budista

Guru Rinpoche, o principal responsável pelo sucesso dos ensinamentos budistas no Tibete, disse que nos tempos de degenerescência – hoje em dia – haveria muitos professores falsos. Chagdud Tulku Rinpoche comentava que atualmente uma em cada 10 ou 20 pessoas se acha capaz de ensinar alguma coisa profunda, implicando com isso que professores verdadeiros são bem mais raros do que isto.

Essa proporção vale para o budismo de forma geral, mas é especialmente verdadeira quanto ao vajrayana (ou budismo tântrico) – a principal forma de budismo praticada no Tibete. O título “lama”, que é a tradução da palavra sânscrita guru, a princípio se aplicava apenas aos mais excelentes entre os mais excelentes professores, aqueles que possuíam não só erudição, grande compaixão e realização meditativa, mas também linhagem pura e sem máculas até a fonte dos ensinamentos, o próprio Buda.

“Linhagem pura” significa que cada um dos professores da linhagem, desde o Buda até o seu professor, mantiveram e sustentaram boa conexão com outros professores de também linhagem pura. Não havendo, portanto, nenhuma ruptura (mudança nos ensinamentos) ou contaminação (por ensinamentos não budistas ou invenções próprias).

Isso era extremamente raro mesmo na era de ouro dos ensinamentos, e em períodos e países em que o Darma (o ensinamento budista) floresceu de forma muito mais ampla do que hoje, em qualquer lugar – que dizer então hoje em dia...

O que ocorre (e ocorre já há muitas décadas), é que qualquer professor ou monge acaba sendo chamado de “lama”, por respeito exagerado e hipérbole, e isso faz com que o sentido original da palavra tenha quase se esvaziado por completo. Adicione-se a isso o fato de que o critério que as várias tradições têm para estabelecer o que é um professor (ou lama) varia muito. Sendo  assim, é preciso que, sempre, independentemente de a pessoa ostentar ou não um título elevado, verificar cuidadosamente as qualificações do professor.

Em outras tradições budistas (apenas a tradição tibetana usa o termo “lama”), embora haja vários tipos, graus, títulos (monge, abade, thera…), modo geral todos eles são kalyanamitras, cuja tradução é “amigo espiritual”, isto é professores. Pode ser um professor mais graduado, ou menos graduado, uma pessoa mais ou menos pública, ensinar outros professores ou controlar ou não um ou mais centros de prática ou mosteiros – nas várias tradições se dá muitos nomes para cada um desses papéis, mas todos eles são kalyanamitras. Guru (que é o que a palavra lama deveria sempre designar, mas não é assim que ocorre) existe apenas no budismo vajrayana. E ele além de ser também um kalyanamitra, tem um papel bastante diferente, como vai ser explicado adiante. (Rinpoche, que significa literalmente “precioso” em tibetano, é apenas um tipo específico de lama que é treinado geralmente desde criança, por ser reconhecido como professor já em outras vidas -- isto é, um tulku que recebeu treinamento completo).

Analisando a qualificação de um professor

Uma dificuldade em analisar a qualificação de alguém como professor é que o budismo possui uma estrita ética no uso da fala. E ela vale para qualquer pessoa, não apenas quando falamos de professores. É considerado inadequado tecer críticas, mesmo que verdadeiras – a não ser perante a própria pessoa ou uma autoridade (dentro ou fora do budismo) que possa fazer algo a respeito (e mesmo assim, claro, respeitosamente). Em outro caso, isso é difamação ou fofoca, isto é, fala não virtuosa.

Assim, quanto melhor o praticante com que você fala, menos ele criticará quem quer que seja. Isso é particularmente verdade com relação a professores budistas, seja do tipo que forem e a que tradição budista pertençam. Este já pode ser na verdade um primeiro indício: caso a pessoa que você está verificando critique outros professores, é bem possível que ela não esteja se atendo sequer a uma ética laica, que dizer a ética mais robusta que se espera de um professor. Quando vemos figuras públicas do budismo criticando abertamente outras figuras públicas na internet, logo sabemos de quem não chegar perto. Provavelmente, aliás, não devemos chegar perto de nenhum dos dois, mas especialmente aquele que está criticando. O melhor é fugir para bem longe.

E, se estamos falando de professores e amigos espirituais apenas, sem entrar no nível vajrayana e na questão de gurus – precisamos ter respeito por todo aquele que tomou refúgio mesmo um instante antes de nós. Caso estejamos na fila para receber o nome de refúgio, a pessoa que recebeu o nome antes de nós já é digna de nosso respeito. Monges, e pessoas que tomam votos mais extensos, sem dúvida são dignos de ainda mais respeito, é claro, mesmo que ser monge não seja o mesmo que ser professor ou entender qualquer coisa do Darma.

Por outro lado, se uma pessoa nos explica uma única palavra do Darma, ou algum detalhe pequeno como juntar as mãos corretamente para fazer reverência, essa pessoa já é nosso kalyanamitra, e ela merece o respeito que damos a um professor. Se não criticamos outras pessoas de forma geral, muito menos criticaríamos a uma pessoa que nos ajudou dessa forma – mesmo que o detalhe seja frugal, e o contato muito breve.

Buscando informações e recomendações

Porém, que tipo de pessoa devemos buscar para nos ensinar o Darma? Definitivamente, não devemos ter baixa autoestima, e buscar o Darma de qualquer um, com qualquer qualificação incerta.

A primeira coisa que você pode fazer é buscar informações na internet. Aqui você começa pelo site do professor que você quer examinar, e então verificar quem são os professores dele. A partir disso, você pode ir para sites confiáveis ou a wikipedia (preferencialmente a em inglês), verificar se há controvérsias envolvendo aquele grupo. Claro, se você apenas buscar pelo Google, você vai encontrar todo tipo de qualidade de informação, é preciso aos poucos “credenciar” os sites também. No budismo tibetano, um indício crucial é verificar se o centro e os professores que você está verificando têm algum problema com Sua Santidade o Dalai Lama. Isso nem sempre é fácil, porque algumas pessoas vão dizer que não há problema, quando efetivamente há. Além dos professores mais evidentemente charlatões, e linhagens falsas, há todo tipo de encrenca menor que pode acontecer com a linhagem, e, a princípio, é bom evitar qualquer controvérsia. Há vários centros fidedignos sem controvérsia alguma, que não tem problema com Sua Santidade. E nas outras tradições budistas que não a vinculada ao Tibete, também é bom estudar os critérios mais específicos. Com relação ao budismo japonês, há um bocado de formas bastante falsas entre algumas genuínas. Algumas vezes a forma é boa, mas os professores não são. Tudo isso se vai vendo.

Depois disso você pode consultar outras pessoas mais experientes, e buscar não necessariamente a pessoa mais popular ou visível, mas em todo caso aquele que recebe as melhores recomendações. Algumas vezes podemos perceber reticência ao perguntar algo: caso perguntemos a um bom praticante, ele pode pensar em criticar, mas não chega a falar nada. Então, com o tempo aprendemos a ficar de olho e reparar recomendações efusivas, de pessoas particularmente respeitáveis. E também a prestar atenção às omissões. Caso perguntemos “Fulano é um bom professor?”, e a pessoa que responde sabe que não pode criticar, ela pode fazer um elogio “neutro”, como “bom, ele é muito inteligente!” Uma pessoa qualquer ouviria isso como um “sim”, mas no contexto do Darma, este talvez seja um jeito de não recomendar o professor sem tecer qualquer crítica, e até fazendo um elogio. Sim, a coisa é bastante sutil.

Um exemplo: quando Dzongsar Khyentse Rinpoche ensinou pela primeira vez no Brasil em 2001, S. Ema. Chagdud Tulku Rinpoche disse que, embora sua própria atividade de benefício aos seres fosse como a luz de um vagalume, Khyentse Rinpoche brilhava como o sol. Então, caso a pessoa tivesse um pouco que fosse de confiança no que Chagdud Rinpoche dizia, naturalmente Khyentse Rinpoche se tornava foco do mesmo ou maior respeito.

Uma recomendação efusiva assim, de alguém tão qualificado, é melhor não ser esquecida e nem se pensar ser algo de pequena monta.

A maioria dos professores é bem cuidadosa com essas recomendações, mas também é preciso atentar que, em se tratando de professores não totalmente iluminados, com o tempo as coisas podem mudar. Um professor pode efetivamente se arrepender de ter elogiado outro professor; caso, por exemplo, alguns anos mais tarde ele porventura cause alguma situação ruim, o que é comum acontecer. Então, é preciso buscar sempre o status mais atual de uma recomendação, já que bons professores podem deixar de sê-lo, e, como é a natureza da impermanência, tudo muda o tempo todo.

Depois de verificar um pouco, podemos tranquilamente ouvir ensinamentos daquela pessoa. A princípio, isto segue sendo parte da verificação, embora, a partir do momento em que ouvimos ensinamentos, essa pessoa se torne um objeto de respeito para nós. Se evitamos criticar pessoas em geral, quanto mais essa pessoa – mesmo que ela não se torne um professor regular nosso, e mesmo que encontremos problemas com ela, e paremos de ouvir seus ensinamentos. Depois que ouvimos ensinamentos dela uma única vez o correto é sempre manter respeito. Mesmo quanto aquelas figuras mais públicas, mesmo caso não tenhamos ouvido ensinamentos pessoalmente, apenas por livro, áudio ou vídeo, o melhor é, por via das dúvidas, evitar qualquer tipo de reprovação. Caso se trate de um professor cheio de controvérsias, e alguém lhe peça uma recomendação, você pode fazer uma advertência muito cuidadosa, dizendo que não sabe bem, mas nunca se interessou por esse estilo, ou algo assim.

Caso, porém, haja controvérsias, e elas pareçam sérias, o melhor é nem ouvir ensinamentos. O melhor é não gerar qualquer tipo de interdependência. Há professores de centros espúrios ou líderes de seitas que evitamos até mesmo falar o nome, quanto mais clicar num vídeo na internet ou comprar um livro.

O aspecto vajrayana: o guru

Novamente, não podemos confundir esse exame e esse respeito para com os professores com o aspecto vajrayana de seguir um guru. Ao apenas ouvir ensinamentos de alguém, mesmo por muitos anos, não se forma compromisso samaya – votos vajrayana – com essa pessoa. Você só tem tais compromissos se eles foram explicitamente dispostos durante uma iniciação. Caso esses compromissos não sejam tomados, você não tem um lama ou guru, mas apenas um kalyanamitra – mesmo que por acaso você chame essa pessoa de “lama” (ou mesmo “rinpoche”). Nesse caso, embora você deva respeito a essa pessoa como alguém que lhe ensinou o Darma, você não tem obrigação nenhuma de fazer o que ela lhe pede, mesmo que seja buscar um chá. Claro, você faz se achar bom e quiser gerar mérito (você gera mérito pela sua devoção, pelas qualidades que você vê, não pelas qualidades que o ser efetivamente tenha). Porém, você não tem compromisso nenhum com essa pessoa e, sem dúvida, pode procurar outros professores (sem consultá-la), e não precisa seguir suas recomendações à letra – nada disso se aplica. A Guru Ioga existe apenas e unicamente no contexto vajrayana, e no relacionamento com um professor que pode conceder esse grau de votos, e deixa explícita essa relação. Algumas vezes, quando é um professor que não pode conceder iniciações, o melhor é, caso a pessoa faça Guru Ioga, visualizar o guru como Padmasambhava mesmo (ou Tsongkhapa, Milarepa, etc., de acordo com a tradição), do que visualizar o guru na forma do professor, com os implementos do guru sambhogakaya (que é como normalmente se faz Guru Ioga). No entanto, o critério de assumir alguém como guru é todo seu, o que pode acontecer é que o professor não tenha por você o compromisso samaya que você tem por ele. Então, você pode fazer guru ioga com quem você quiser, apenas que guru ioga é algo específico do vajrayana, então talvez seja adequado que essa pessoa seja um preceptor completamente autorizado no vajrayana.

É apenas quando um compromisso é explicitamente tomado durante uma cerimônia de iniciação que entramos na área de “obedecer a tudo que o professor diz”, e nunca deixar de ver o professor como um Buda – situação em que é melhor consultar o guru até mesmo antes de ler algo ou ouvir ensinamentos de outro professor. Embora seja meritório ver todos os seres como um Buda, e especialmente alguém que lhe ensina o Darma, isso só surge como um voto no contexto vajrayana, durante uma abhiseka, ou iniciação. Caso seu professor não conceda iniciações, você não tem esse compromisso de ver ele como Buda, tampouco de obedecê-lo, ou qualquer questão de fidelidade.

Esse compromisso vajrayana pode ser visto como algo muito problemático para algumas pessoas, e sem dúvida o vajrayana não é para todos. Portanto, caso você não ache correto “obedecer tudo” que um guru diz, e não se considere capaz de manter um voto de manter visão pura, é muito fácil: não tome iniciações vajrayana. Há muitas práticas budistas que podem ser realizadas sem confiar neste método, ainda que ele seja considerado excelente.

Se, por outro lado, você considera este um bom método para você, então examine o professor com bastante mais cuidado, porque este não é um voto que pode ser devolvido.

Thinley Norbu, Dilgo Khyentse e Dzongsar Khyentse

Começando a ouvir um professor

Para apenas ouvir ensinamentos, confie nas recomendações de pessoas confiáveis (aos poucos você forma uma rede desse tipo de pessoa criteriosa, que é o que acaba reforçando o que chamamos de “linhagem” – isto é, você começa a se aproximar de um estilo ou outro de fazer as coisas, e que tem laços de recomendações mútuas). Também observe aspectos mundanos como o currículo, títulos, aparência, carisma, como se portam os alunos, e como vive o professor. Caso você ache a pessoa confiável, ouça ensinamentos e verifique se são bons. Coloque em prática por alguns anos, e siga verificando. Não se contente, porém, com apenas um professor ou uns poucos ensinamentos, e com professores locais ou novatos. Busque excelência sempre, e, sem baixa autoestima, busque os melhores entre os melhores. Não se contente com uma pessoa que começou no Darma anteontem – embora, se ela começou antes de você, ela seja um objeto de respeito, mesmo que ela seja um pior praticante. Para dispor o tempo de ouvir alguém por uma ou duas horas, ou vários dias, busque alguém que tenha realmente qualificações. Que esteja no Darma há muitas décadas, ou vidas, que tenha feito muitos retiros longos, que tenha ouvido muitos professores excelentes, que tenha formação de excelência, e que seja realmente compassiva, e não apenas popular ou carismática. Que tenha títulos, currículo, estudo, recomendações, não seja controversa, tenha linhagem sem máculas, manifeste compaixão, tenha feito muita prática. Nada disso garante um bom professor, ou eventualmente um bom guru, mas são indícios muito fortes para ser válido começar a avaliar essa pessoa no convívio. Com várias destes elementos presentes, então é alguém que você pode começar a avaliar para ter como professor –  e, se for o caso dele deter os ensinamentos vajrayana (conceder iniciações), e esse for seu interesse, seguir por esse caminho e tomá-lo como um guru.

Esteja sempre atento também a não ficar preso a um só professor, e não confundir o papel de kalyanamitra com guru. Novamente, se ele não confere o compromisso samaya, iniciação vajrayana, e assim por diante, você não tem obrigação samaya, isto é, você não precisa aceitar tudo o que ele diz, nem você tem nenhum tipo de contrato de exclusividade. Se você quer esse grau de obrigação (que, segundo o vajrayana, produz a prática mais efetiva e extremamente rápida), então é necessário ser ainda mais criterioso do que na busca apenas de um professor. O melhor é – depois de todos os cuidados anteriores – examinar por três anos ou mais (os textos clássicos dizem em torno de oito anos), antes de tomar um compromisso desse tipo.

Dzongsar Khyentse Rinpoche, em seu excelente livro The Guru Drinks Bourbon? (O Guru Bebe Uísque?), lista as seguintes qualidades de um bom guru. Ele

  • realizou a visão última;
  • tem a mente aberta;
  • é relutante em ensinar [você tem que insistir];
  • é tolerante;
  • é estudado;
  • é disciplinado;
  • é bondoso e nunca denigre os outros;
  • tem linhagem;
  • é progressivo;
  • é humilde;
  • não está interessado em sua carteira, coxas ou dedos [dinheiro, sexo ou abuso físico e emocional];
  • tem um guru vivo e uma tradição viva;
  • é devotado às três joias;
  • confia nas leis do carma;
  • é generoso;
  • coloca você em ambientes virtuosos;
  • domou corpo, fala e mente;
  • é gentil e suave;
  • tem percepção pura;
  • não é julgador;
  • vive de acordo com as regras do Vinaya, do Bodisatvayana e, é claro, do Vajrayana;
  • teme a desvirtude;
  • é disposto a perdoar;
  • é capaz [tem habilidades].

Rinpoche explica cada um desses itens em detalhe em seu livro, e ele também lista que guru devemos evitar. Quando ele:

  • tem pouco conhecimento;
  • não tem devoção no Darma, ao próprio guru, ou a sangha;
  • não tem uma tradição viva;
  • o distancia de ambientes virtuosos;
  • tem corpo, fala e mente fora de controle;
  • é orgulhoso e hipócrita;
  • é bastante maldoso e cruel com os outros;
  • não tem percepção pura;
  • julga demasiado;
  • é exigente com relação a comida, bebida, posses e quartos de hotel;
  • não vive de acordo com as regras do Buda no Vinaya, Bodisatvayana e, é claro, vajrayana;
  • quando fala, sempre está louvando a si próprio sempre que fala, mesmo que use palavras humildes;
  • denigre os outros sutilmente;
  • não teme a desvirtude;
  • não tem a capacidade de perdoar;
  • tem muito pouco senso de vergonha;
  • dá ensinamentos que não fornecem antídoto;
  • tem segundas intenções autocentradas;
  • fica incomodado com sua disciplina na prática do Darma;

Rinpoche conclui:

“Hoje em dia há lamas que gastam boa parte do tempo arrumando a agenda para eventos semanais, mensais e anuais, desenvolvendo sites, imprimindo panfletos e posters, e fazendo pen-drives comemorativos e sacolas cheias de promoções. E então, durante os ensinamentos, passam metade do tempo falando de gente importante e sobre quantas pessoas estiveram em seus últimos ensinamentos. [‘Como nossas atividades se expandiram!’] Depois vão para a grama posar em grandes fotos em grupo, bem no meio de todos. Caso Vajradara tivesse um corpo humano com emoções humanas, este comportamento lhe daria calafrios de vergonha, e ele deixaria a cabeça despencar de tristeza.”

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