Trecho do livro Conselhos de coração para coração, de Chökyi Nyima Rinpoche

Trecho do livro Conselhos de coração para coração:

Reconhecer nossa ilusão é um passo muito importante, mas só fazer isso não é suficiente. Não há loucura maior do que alguém passar uma vida inteira reconhecendo que está iludido e não fazer nada a respeito. Depois, quando já for tarde demais para fazer qualquer coisa, nos veremos às portas da morte, pensando: “Que tolo eu fui! Desperdicei essa oportunidade preciosa!” Nesse momento, tudo o que conseguimos fazer é bater no peito em desespero. No decorrer de toda a nossa existência, haverá uma constatação mais devastadora do que essa?

Para garantir que isso nunca aconteça conosco, devemos levar essa mensagem ao coração – não importa quão atraente possam parecer os objetos dos sentidos, eles não têm o poder de nos proporcionar nenhuma felicidade duradoura. Quando esse entendimento começa a penetrar em nós efetivamente, ele é chamado de “renúncia”.

Renúncia não quer dizer apenas raspar a cabeça ou usar roupas fora de moda e comer alimentos de terceira categoria. Renúncia, aqui, se refere a abdicar de tendências doentias com base no nosso entendimento daquilo que causa sofrimento e insatisfação. Externamente, podemos parecer uma pessoa comum, mas, por dentro, somos diferentes. Por quê? Porque os prazeres sensoriais externos perderam seu domínio sobre nós. Agora, não somos mais enganados pelos objetos dos cinco sentidos. Na verdade, nossa fixação e nosso apego a eles se tornou coisa do passado.

É nosso dever examinar nossa mente com persistência. Por quê? Porque é essencial para o nosso próprio bem-estar, e para o bem-estar dos outros, ficarmos de olho no que está acontecendo dentro de nós, momento a momento, para que possamos perceber quando sentimos apego e anseio pelos prazeres dos sentidos.

Devemos manter a guarda porque os prazeres do samsara são perigosamente poderosos e sedutores. Embora tenhamos entendido intelectualmente que nada de bom pode surgir da busca desenfreada pelos prazeres mundanos, no momento em que percebemos um objeto atraente, anseio, avidez e desejo se movimentam e ficam à espreita. Na verdade, poderíamos dizer que os objetos dos sentidos funcionam como ímãs. Tal como um ímã atrai instantaneamente a limalha de ferro, no momento em que percebemos algo como atraente ou repulsivo, as emoções negativas aparecem.

A quebra dessa reação em cadeia aparentemente automática, que nos aprisiona com tanta força ao círculo vicioso do samsara, depende unicamente de nós. Há muito a ser alcançado se apenas tivermos consciência dessas tendências. O próximo passo é deixar de lado nosso apego e envolvimento com os prazeres sensoriais. Uma vez que nos conscientizamos da natureza impermanente e ilusória dos prazeres sensoriais, a nossa atração por eles se tornará menos imperiosa. Com isso, nossas emoções negativas começam a diminuir.

Podemos nos considerar praticantes do Dharma, mas não seremos capazes de realmente entender e aplicar o Dharma a menos que percebamos a futilidade das buscas mundanas. Na verdade, devemos entender que quanto maior for a nossa renúncia, melhor será a nossa prática do Dharma. O grau do nosso sucesso na prática do Dharma corresponde diretamente à força da nossa renúncia. Na verdade, só seremos verdadeiros praticantes do Dharma quando abrirmos espaço para a renúncia. Sem renúncia, é muito fácil não conseguirmos achar tempo para nos dedicar à prática do Dharma. Por quê? Porque estamos simplesmente tão envolvidos na cativante busca de fama, riqueza, respeito e coisas do tipo que, nem por um segundo, consideramos o risco de que podemos perfeitamente colher os seus opostos.

Se deixarmos de ficar fascinados pelos objetos externos, fascínio esse que nos escraviza a eles, a influência das emoções negativas começará a diminuir.

As emoções negativas nada mais são do que sementes de calamidade. Fortes emoções negativas, tais como raiva e ambição, são fáceis de reconhecer e, portanto, um pouco mais fáceis de serem abandonadas. Mas há duas emoções muito difíceis de reconhecer e muito mais difíceis de serem eliminadas – a inveja e o orgulho. Para nós, praticantes do Dharma, essas duas emoções se assemelham a ladrões astuciosos que facilmente roubam toda a nossa riqueza espiritual.

A inveja e o orgulho são especialistas em tramar uma ilusão muito convincente – a da separação entre “eu” e “outro”. Quando temos arrogância, não conseguimos nos relacionar com outras pessoas de uma forma aberta e descontraída. Em outras palavras, prevalece uma antipatia sutil em relação aos outros. O mesmo ocorre com a inveja. A inveja nos faz sentir tensos, inseguros, nervosos e um pouco agressivos. Podemos pensar: “Talvez o meu amigo seja melhor do que eu”. Esse pensamento é acompanhado por sentimentos de insegurança, agitação e hostilidade. O medo também se infiltra aqui. De um modo geral, as emoções negativas não surgem isoladamente uma após a outra, mas em combinações complexas. Em geral, uma série de outras emoções negativas vem colorir o pano de fundo de uma emoção predominante. Dessa forma, a inveja e o orgulho são como véus ofuscantes que caem sobre o nosso rosto, nos impedindo de ver as outras pessoas e de nos relacionar com elas de forma aberta, carinhosa e direta. Sempre que estabelecemos uma forte distinção entre nós e os outros, reforçamos nossa tendência já tão enrijecida de perceber o mundo de uma forma dualista.

A tendência de ficarmos tão obcecados com os outros nos torna cegos em relação às nossas próprias deficiências. Embora estejamos plenamente conscientes das falhas dos outros, raras vezes notamos as nossas próprias imperfeições. É difícil o Dharma exercer qualquer efeito positivo sobre nós, se mantivermos uma estrutura mental que se ocupa de um olhar perspicaz sobre as falhas dos outros.

Um dos significados do Dharma, ou chö, em tibetano, é mudar e transformar, pois a mudança e a transformação são o verdadeiro propósito do Dharma. Praticado corretamente, ele transformará a nossa atitude rígida e erradicará as nossas falsas crenças. Se o Dharma não tiver efeito sobre nós, então, a nossa prática do Dharma não terá servido para nada. Os aspectos rígidos, tensos e perturbados da nossa mente precisam ser amaciados. Quando a mente se tornar amorosa e bondosa, as emoções negativas terão automaticamente diminuído. A diminuição das emoções negativas é o melhor sinal de que realmente nos tornamos praticantes do Dharma.

Isso depende muito da nossa capacidade de renunciar. Reiterando, a renúncia é um estado de espírito que deseja deixar de causar danos a si mesmo e aos outros. É uma mente bem consciente da natureza impermanente e insubstancial dos fenômenos samsáricos, e que não quer mais ser tripudiada e enganada pelo samsara. Essa mente não tolera mais os truques das aparições reluzentes que tentam nos seduzir a desperdiçar o nosso precioso nascimento humano.

Com base em um sentido genuíno de renúncia, outras boas qualidades brotarão como, por exemplo, a compaixão, que percebe como os seres sencientes continuam a sofrer inutilmente. Sem nunca encontrar satisfação, os seres buscam incansavelmente miríades de prazeres sensoriais, divertimentos fugazes e ilusórios que, ao fim, só os levarão a um envolvimento cada vez mais profundo no samsara e a um sofrimento cada vez maior.

Devoção e fé são qualidades indispensáveis para os praticantes do Dharma e
florescem em uma mente que tenha desenvolvido renúncia.

Quanto digo devoção e fé não estou me referindo ao que chamamos de “fé cega”. Na verdade, fé e devoção autênticas estão imbuídas da certeza genuína que surge quando investigamos a natureza dos fenômenos. Lentamente, chegamos a compreender a natureza impermanente dos fenômenos condicionados que, embora se manifestem e apareçam, são, na verdade, totalmente desprovidos de qualquer existência substancial. Dessa forma, são aparecimentos vazios. A confiança nesse entendimento se manifesta como fé e devoção. Por quê? Porque percebemos que aquilo que Buda ensinou não é uma teoria distante e impraticável, mas sim uma descrição da verdadeira natureza das coisas tal como são.

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