Yongey Mingyur Rinpoche, autor de "Alegre Sabedoria"

IDENTIFICANDO O PROBLEMA

Como seres humanos, também sofremos por não obter o que queremos e por não conseguirmos manter o que temos.
Kalu Rinpoche, Luminous Mind: The Way of the Buddha, traduzido para o inglês por Maria Montenegro

A primeira das Quatro Nobres Verdades é chamada de a Verdade do Sofrimento. Os sutras relacionados a esses ensinamentos foram traduzidos de muitas maneiras ao longo dos séculos. Dependendo da tradução, podemos encontrar esse princípio básico da experiência descrito como “existe sofrimento” ou apenas “o sofrimento é”.


À primeira vista, a primeira das Quatro Nobres Verdades pode parecer bastante deprimente. Muitas pessoas, quando ouvem ou leem sobre o assunto, tendem a definir o budismo como excessivamente pessimista. “Esses budistas estão sempre reclamando que a vida é cheia de sofrimento. A única maneira de ser feliz é renunciar ao mundo, ir para uma montanha em algum lugar e meditar todos os dias. Que coisa chata! Eu não estou sofrendo. Minha vida é maravilhosa!”


Primeiramente, é importante observar que os ensinamentos budistas não afirmam que, para encontrar a verdadeira liberdade, as pessoas precisam abrir mão de suas casas, seus empregos, seus carros ou quaisquer outros bens materiais. Como a sua história de vida demonstra, o próprio Buda tentou levar uma vida de extrema austeridade sem encontrar a paz que procurava.


Além disso, não há como negar que para algumas pessoas, por um tempo, certas circunstâncias podem se reunir de tal maneira que a vida parece não poder ser melhor. Conheci diversas pessoas que pareciam bastante satisfeitas com suas vidas. Se eu lhes perguntasse como estavam, eles responderiam: “Tudo bem” ou “Estou ótima!” Isso, claro, até que fiquem doentes, percam o emprego ou seus filhos cheguem à adolescência (e da noite para o dia deixem de ser carinhosas fontes de alegria para se tornarem completos desconhecidos, temperamentais e inquietos, não querendo nada com os pais). Então, se eu perguntasse como elas estavam, a resposta mudaria um pouco: “Estou bem, a não ser...” ou “Está tudo ótimo, mas...”.


Essa é, talvez, a mensagem essencial da Primeira Nobre Verdade: a vida tem uma maneira de interromper, apresentando surpresas momentâneas até mesmo aos mais satisfeitos. Tais surpresas – juntamente com experiências mais sutis e menos visíveis, como as dores que vêm com a idade, a frustração de esperar na fila do supermercado ou simplesmente estar atrasado para um compromisso – podem ser entendidas como manifestações do sofrimento.


No entanto, eu consigo entender por que essa perspectiva abrangente pode ser de difícil compreensão. “Sofrimento” – a palavra frequentemente usada nas traduções da Primeira Nobre Verdade – é um termo carregado. Quando leem ou ouvem essa palavra, as pessoas tendem a pensar que só se refere à dor extrema ou ao sofrimento crônico.

Mas, na verdade, dukkha – a palavra utilizada nos sutras – está mais próxima do significado de termos comumente utilizados em todo o mundo moderno, como “mal-estar”, “doença”, “desconforto” e “insatisfação”. Alguns textos budistas elaboram o seu significado usando a analogia de uma roda de oleiro enferrujada, que ao girar faz uma espécie de som estridente. Outros comentários usam uma imagem de alguém andando em um carro com uma roda um pouco estragada: toda vez que a roda passa pelo ponto danificado, o condutor sofre um solavanco.

Dukkha - a imagem de uma roda de oleiro enferrujada pode ilustrar a primeira nobre verdadeoutra imagem para ilustrar dukkha: uma roda com defeito, que frequentemente sacode o condutor


Assim, embora o sofrimento – dukkha – de fato se refira a condições extremas, esse termo, conforme foi utilizado pelo Buda e pelos subsequentes mestres da filosofia e da prática budista, pode ser mais bem compreendido como um sentimento generalizado de que algo não está muito certo: a vida poderia ser melhor se as circunstâncias fossem diferentes; seríamos mais felizes se fôssemos mais novos, mais magros, mais ricos, se estivéssemos em um relacionamento ou terminássemos um relacionamento. A lista de sofrimentos segue em frente. Dukkha, portanto, engloba todo o espectro de condições, desde algo tão simples como uma coceira até experiências mais traumáticas de dor crônica ou uma doença letal. No futuro, talvez, a palavra dukkha será aceita em muitas línguas e culturas diferentes, do mesmo modo que a palavra sânscrita karma, oferecendo-nos uma compreensão mais ampla de um termo que muitas vezes tem sido traduzido como “sofrimento”.


Assim como ter um médico para identificar os sintomas é o primeiro passo no tratamento de uma doença, compreender dukkha como a condição básica da vida é o primeiro passo para nos livrarmos do desconforto e do mal-estar. Na verdade, para algumas pessoas, apenas ouvir a Primeira Nobre Verdade pode ser uma experiência libertadora. Recentemente um dos meus alunos mais antigos admitiu que, ao longo de sua infância e adolescência, sentia-se um pouco alienado das pessoas ao redor. As outras pessoas pareciam saber exatamente a coisa certa para se dizer e fazer. Eram mais espertas do que ele, vestiam-se melhor e pareciam se dar bem umas com as outras sem qualquer esforço. Era como se o resto do mundo tivesse recebido um “Manual da Felicidade” ao nascer e, de alguma forma, ele tivesse sido esquecido.


Mais tarde, quando fez um curso universitário de filosofia oriental, ele se deparou com as Quatro Nobres Verdades e toda a sua perspectiva começou a mudar. Percebeu que não estava sozinho em seu desconforto. Na verdade, a dificuldade e a alienação eram experiências que vinham sendo compartilhadas por outras pessoas durante séculos. Ele podia, então, abrir mão de toda aquela história triste sobre não ter recebido o Manual da Felicidade – e apenas ser exatamente como era. Isso não quer dizer que não haveria trabalho a fazer, mas pelo menos ele poderia parar de fingir para o mundo exterior que era de fato capaz de estar junto quando, na verdade, não se sentia assim. Poderia começar a trabalhar com o seu sentimento básico de inadequação, não como um forasteiro solitário, mas como alguém que tinha uma ligação comum com o resto da humanidade. Também significava que seria menos provável ser pego de surpresa quando sentisse as maneiras específicas com que o sofrimento se manifestava para ele – do mesmo modo que, para mim, saber que o pânico estava por perto diminuía a dor de sua ferroada.

Mingyur Rinpoche, no capítulo 2 do livro "Alegre Sabedoria"

Trechos de livros

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